A DIFUSÃO DA OCARINA EM PORTUGAL E NO BRASIL NO SECULO XIX
- Simone Grassi & Francesco Coiro
- 6 apr 2021
- Tempo di lettura: 10 min
Aggiornamento: 27 mar 2024
O presente trabalho tem como objetivo reconstituir as fases de difusão da ocarina em Portugal e, posteriormente, no Brasil, durante o final do século XIX. Adicionalmente, pretendemos recuperar os consequentes nascimentos de grupos de ocarinas no rasto do original de Budrio e preencher a incompletude de informação sobre os factos ocorridos ao primeiro grupo de Budrio (os Montanari dell'Appeninno), após os concertos de Lisboa em 1876. Como resultado de um encontro durante o Festival Internacional de Ocarina em 2019 em Budrio com o Sr. Inocêncio Casquinha, músico e fabricante de instrumentos, português natural de Vila Franca de Xira, uma pequena cidade perto de Lisboa, tivemos conhecimento da existência de uma das maiores colecções privadas portuguesas de ocarinas (constituída com 23 peças) preservada nesta vila. Após uma análise cuidadosa de algumas fotos desta coleção, em conversa com o estimado músico de Budrio Fabio Galliani, descobrimos que uma destas peças parece ser feita pelo ocarinista de Budrio Ercole Mezzetti. A referida peça pode ser reconhecida pelo facto de o último orifício da direita (dedo direito mindinho) encontrar-se dividido em dois pequenos orifícios, e pela presença de uma marca dourada (não totalmente distinguível), mas que diferencia esta ocarina das demais, de fatura provavelmente portuguesa. A primeira particularidade é uma característica própria e única das produções assinadas pelo Ercole Mezzetti. A questão que inicialmente nos colocámos foi como é que uma ocarina de Budrio do final do século XIX chegou a este país português. Soubemos imediatamente da existência de um grupo de ocarinas no país, fundado em 1888, ainda ativo, atualmente sem a presença dos ocarinas (Ateneu Artístico Vilafranquense). Recuperamos as informações sobre a turnê europeia do primeiro grupo de Budrio, cujas primeiras viagens em território europeu remontam a 1873. Os membros deste grupo, conhecidos como Montanari dell’Appennino ou " Les Montagnards des Appennins", usavam trajes típicos de moda alpina. Alguns artigos de jornais (preservados por Alberto Mezzetti num caderno de viagens e, atualmente, encontrado no Museu da Ocarina em Budrio), demonstram que este grupo era constituído pelos irmãos Alberto e Ercole Mezzetti, Ulisse Avoni, Davide Mignani, Giuseppe Grossi, Cesare Vicinelli e Federico Vignoli. Adicionalmente, as notícias confirmam a realização de 10 concertos, em Lisboa, em particular no Circo Price, durante o mês de Janeiro de 1879. De acordo com a obra do autor português de Vila Franca de Xira, Salvador Marques, pelo menos o primeiro concerto foi realizado no inverno do ano de 1875. Desta forma, como base nesta confirmação, o nosso primeiro pressuposto passou por atribuir a difusão da ocarina em território português a partir desta data e, consequentemente partir do princípio que Mezzetti doou/vendeu/criou a sua ocarina que hoje se conserva em Vila Franca de Xira durante esse ano. Desta forma, se por um lado é impossível verificar a aquisição da peça, admitimos que pela fabricação mais "industrializada", trata-se de uma aquisição póstuma à inauguração da oficina dos irmãos Mezzetti (ocorrida após a digressão europeia). Por outro lado, é possível sustentar que o primeiro contacto entre a ocarina e Portugal ocorreu após os concertos suprareferidos.
Em 1890, numa entrevista a Alberto Mezzetti, em virtude da Feira Francesa de Londres (na qual Mezzetti alugou um estande), mum panfleto publicitário, cujo objetivo seria demonstrar a superioridade das ocarinas da sua autoria em deterioramento das ocarinas austríacas produzidas por Heinrich Fiehn, encontramos as seguintes afirmações:
“Decidimos fazer um tour pela Europa, a partir da Exposição de Viena de 1873. Foi em Lisboa que pela primeira vez encontramos imitadores do nosso grupo de ocarinas: pela ambição estúpida (!) de um dos membros do nosso grupo, Vicinelli, que teve a audácia de creditar a si mesmo a invenção da ocarina e de construir uma em público. Isto deu a ideia a alguns músicos habilidosos da Orquestra da Ópera de Lisboa de criar um outro grupo de ocarinas. Tocando instrumentos construídos por eles mesmos, com nosso mesmo nome de "Montanari degli Apennini" eles foram tocar no Brasil e na América, enquanto nós fomos para a Espanha e França. "
É muito interessante a última informação: Mezzetti afirma que este grupo de portugueses copiou o nome deles. Na verdade, como vimos em várias fontes, embora os membros deste grupo se vestissem com os trajes típicos dos Budrieses, tocasse algumas músicas deles, era conhecido como Sociedade de Concertos de Ocarinas e, posteriormente, identificado no Brasil como Ocarinistas portugueses. Até ao momento não eram conhecidos os nomes dos membros deste grupo, pelo que foram realizadas várias especulações sobre os mesmos. Por exemplo, acreditava-se que este novo grupo de ocarinistas portugueses incluía também alguns dos Montanari (hipoteticamente Vicinelli, Mignani e Avoni). Ademais, temos conhecimento da existência de um manuscrito inédito, da década de 1930 do musico Casari, no qual é defendido uma teoria diferente. Este manuscrito revela que o segundo grupo substituiu os músicos portugueses por antigos e novos ocarinistas italianos, provavelmente eles próprios de Budrio (Cupini, Stupazzoni , Bagnoli, Tassoni), assim como realizou uma longa digressão pelo Norte da Europa (Holanda, Dinamarca, Suécia, Áustria)[1]. No entanto, não encontramos nenhuma referência de que os últimos artistas mencionados tiveram relação com os Montanari originales. De qualquer forma, encontramos uma fonte que relaciona os nomes dos componentes, afastando assim quaisquer dúvidas sobre o assunto[2]. Os nomes desses músicos são:
Filippe Duarte
Cláudio Gonçalves Rosa
Henrique Plácido Cáceres
José Rodrigues de Oliveira
Júlio Teodoro da Cunha Taborda
Lourenço Dalhunty
Alexandre Ferreira
Logo após a criação do grupo, esses músicos partiram para diversos espetáculos em Portugal (em particular no Porto) e América do Sul, principalmente no Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahía, Maceió, Alagoas, Campinas , Santos, Rio Grande, Pelotas).
A OCARINA NO BRASIL
As primeiras evidências que encontramos relativas às apresentações públicas dos Ocarinistas portugueses no Brasil datam 11 de novembro de 1876, onde se apresentaram na capital São Luís, na região do Maranhão, executando a peça Pot pourri do Fausto[3]. Na fonte, são indicados como "rivais dos Montanari degli Appennini, dos quais nada têm a invejar". A segunda evidência encontrada remonta a uma actuação em Pernambuco em janeiro de 1877. Aqui também são identificados como rivais dos Montanari degli Appennini. Entre as peças propostas encontramos Norma, A mandolinata, Polka do rouxignol[4]; títulos já presentes no repertório dos Montanari dell'Appennino de Budrio. A primeira apresentação na capital carioca aconteceu no dia 17 de maio de 1877, no teatro Don Pedro II. Ainda na nesta fonte é especificado que estes são rivais dos Montanari degli Appennini[5]. É muito curioso que em todos os artigos encontrados sejam citados como "rivais" dos Montanari degli Appennini, quando, na verdade, estes nunca tinham viajado no Brasil e, portanto, eram desconhecidos por aquele público. Uma hipótese razoável sugere um comunicado de imprensa distribuído aos diversos jornais brasileiros antes da chegada deles às várias cidades por um hipotético “tour manager” como era a prática. A experiência deste grupo, no entanto, durou apenas alguns anos (1876-77), após os quais o grupo retornou à Europa e os vários membros abandonaram a ocarina e voltaram ao instrumento que tocavam antes[6]. Antes de regressar às terras lusitanas, sabemos que foram até à Argentina, onde temos a notícia de um concerto em Buenos Aires em setembro de 1877[7]. Essa turnê pelo Brasil despertou um interesse notável pelo instrumento de terracota, tanto que inspirou outros músicos locais a formarem grupos de ocarinas. Os primeiros testemunhos que encontramos são dos Ocarinistas Alagoanos, dos quais temos uma reportagem num jornal local sobre um concerto no dia 16 de junho de 1877[8]. Até ao momento a única informação que sabemos é o fato de serem oriundos da região de Alagoas.
1ª parte: Abertura -Corda de noiva
2ª parte: pot pourri de Ernani
Canções de Somnambula e O pirata
3ª parte: Abertura – Os emigrados da América
Invocaçao do Guaranay
Mandolinata
Hymno de D. Luiz I
Traviata
Marcha real italiana
Adeus
Misere (trovador)
Danúbio (Strauss)
Allons nous
A ocarinista
Linda
Rouxinol
Hino nacional brasileiro
É evidente que algumas destas peças são resgatadas das atuações dos ocarinistas portugueses, que por sua vez se inspiraram no grupo de Budrio. É interessante sublinhar que Benito Meneses pertencia também ao Grupo ocarinista das Caldas da Rainha. Em 1878, alguns sócios fizeram uma viagem ao Rio de Janeiro junto com Rafael Bordalo Pinheiro (conhecido artista português e ex-editor do jornal brasileiro O Mosquito) e aqui Benito Meneses pode ter decidido juntar-se aos Fluminenses. Infelizmente, não foi possível recuperar mais informações relativamente a este grupo. Informamos que esta última informação surge de um fórum de discussão da ocarina e foi apresentada por um usuário português apaixonado pelo assunto, e não temos posibilidade de consultar as fontes.
OS GRUPOS DE OCARINAS PORTUGUESES E BRASILEIROS FORMADOS APÓS 1875
O grupo acima referido fornece mais informações sobre a formação de grupos ocarinistas em Portugal. Em conjunto com outras fontes[11], é possível elaborar a seguinte lista de grupos ocarinistas formados em Portugal e no Brasil após os concertos em Lisboa de 1875/76 do grupo dos Montanari dell’Appennino:
PORTUGAL:
- Sociedade de Concertos de Ocarinas (Ocarinistas Portugueses) (1876-1878)
- Ocarinistas de Caldas da Rainha (1876? – 1895)
- Ocarinistas de Mafra (Troupe ocarinista 1 de dezembro) (1886 –1895)
- Ocarinistas de Sintra (1876? - 1905)
- Ocarinistas de Ericeira (1894 –??)
- Ocarinistas da Universidade de Coimbra (1880? - ??)
- Ateneu Artístico Vilafranquense (Fanfarra 1º de Maio) (1888 – ainda ativo mas sem ocarinas)
- Fanfarra Ocarinista Republicana 5 de Outubro Olivalense di Lisbona (1886 – ainda ativa como banda da Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense)[12]
- Montanhezes dos Herminios (1877? -??)
Destes últimos apenas traçamos um artigo no Diário Ilustrado de Lisboa, de 3 de março de 1877, no qual é anunciado um dos seus concerto com a presença da rainha Maria Pia de Savoia. Adicionalmente, são relatados os nomes dos componentes do septeto: Affonso Pereira Amor Machado, José Baptista Ribeiro, José Ribeiro Alves, Manuel Modesto Velasques, José Francisco Pires, João Vicente Conrado e Francisco Thedim[13]. Pouco depois dos concertos em Lisboa de 1876, alguns compositores foram noticiados a título individual em Aveiro, Porto, Lisboa e Braga. Temos o testemunho de um Major português, João Carlo Ribeiros, que, depois dos concertos em Lisboa, obteve ocarinas por via dos músicos de Budrio e, solicitou a construção de outras para formar um grupo de ocarinistas:
“Quando apareceu em Lisboa a trupe dos ocarinistas italianos, Ribeiro obteve deles uma ou duas ocarinas, e exerciando-se aquele instrumento, fez construir alguns sob sua direção, e conseguiu organizar uma banda de ocarinistas, que instruiu e ensaiou, sub-a em público , que a normalizada com muitos aplausos.”[14]
Esta personalidade poderia ter sido um dos compositores individuais ou um dos mencionados nas notas de Mezzetti, nas quais é referido que Vicinelli revelou em alguns locais a construção do instrumento. A sociedade de Concertos de Ocarinas ou os Montanhezes dos Herminios, também podem ter sido fundados por Ribeiros, que em agosto de 1876 abandonou para servir em Moçambique.
BRASIL:
- Ocarinistas Alagoanos (1877 - ??)
- Ocarinistas Pelotenses (1878 - 1878)
- Ocarinistas Fluminenses (1878- ??)
- Sociedade de ocarinistas Maranhenses (1878? - ??)[15]
CONCLUSÕES
Em suma, concluímos que a descoberta mais significativa desta investigação consiste na forte influencia que os músicos de Budrio tiveram na difusão da ocarina no oeste do mundo, todavia de forma indireta, como foram os portugueses a difundirem a música deste instrumento, curiosamente vistindo-se com os trajes do grupo de Budrio e reproduzindo parte do repertório deles. Para compreendermos isto, preenchemos algumas lacunas nos períodos subsequentes aos concertos de Lisboa de 1875/76, descobrindo que nenhum ocarinista de Budrio daquela época foi ao Brasil e que os únicos difusores da ocarina naquela parte do mundo eram portugueses. Além disso, constatámos o entusiasmo dos locais das zonas onde decorreram os concertos e o consequente grande florescimento de grupos locais portugueses e brasileiros, que pudemos catalogar e ordenar cronologicamente para mapear a difusão da ocarina nessas áreas, ao longo do final do século XIX. Ademais, sublinhamos a rapidez dos músicos mesmo a construirem e a aprenderem a tocar um instrumento tão difícil/particular. Apesar de tratarem-se de músicos é impossível não ficarmos surpreendidos com a rápida adesão ao instrumento que culminou com a criação de septetos e na reprodução de um vasto e complexo repertórios. Em concretos, estima-se que no máximo de 8 meses o grupo Sociedade de Concertos de Ocarinas conseguiu familiarizar-se com o instrumento e preparar o reportório com o objetivo de iniciar uma digressão pelo Brasil. Certamente existem mais documentos com informações relevantes, para além de todos os documentos que tivemos acesso. A esperança é ter acesso ao maior número possível de fontes para para garantir a reconstituição, mais pormenorizada possível, do legado e da influências que a ocarina de Budrio deixou pelo mundo, a prova do seu forte apreço.
[1] Não nos foi possível consultar diretamente esta fonte. O conteúdo nos foi relatado diretamente pelo proprietário do manuscrito.
[2] Lopes, R. C. “Duarte, Filipe”. In Castelo-Branco, S. (dir.). Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, Vol. 2: C – L. Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2010, p. 385
[3] Jornal O PAIZ n.193, 17 novembro 1876
[4] Jornal GAZETA DE NOTICIAS n.21 , 22 enero 1877
[5] Jornal O MOSQUITO n.415, 19 maio 1877
[6] Lopes, R. C. “Duarte, Filipe”. In Castelo-Branco, S. (dir.). Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, Vol. 2: C – L. Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2010, p. 385
[7] Jornal EL MOSQUITO, 30 setembro 1877
[8] Jornal JORNAL DO PILAR n.21, 25 junho 1877
[9] Jornal DIÁRIO POPULAR DE PELOTAS, 7 julho 1878
[10] Jornal O CRUZEIRO n.241, 30 agosto 1878
[11] TRADIÇÕES MUSICAIS DE ESTREMADURA, Ed. Tradisom, Vila Verde, 2000
[12] Página web oficial da Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense
[13] Jornal DIARIO ILUSTRADO n. 1482,3 março 1877
[14] DICIONÁRIO HISTÓRICO, COROGRÁFICO, HERÁLDICO, BIOGRÁFICO, BIBLIOGRÁFICO, NUMISMÁTICO E ARTÍSTICO; João Romano Torres Editor, 1904-1915. Volume VI, pag. 262-263
[15] O único vestígio encontrado da existência dele encontra-se no jornal O PAIZ n. 214, 21 de setembro 1878
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